A incrível obsessão evangélica com os eventos

by Unknown on segunda-feira, 6 de julho de 2015



Há algum tempo atrás, apeteceu-me reflectir sobre a incrível e tão actual obsessão evangélica com eventos. Porque os fazemos, o que lhes dá substância, e principalmente, porque é que há tantos e com um lugar tão proeminente na nossa vivência comunitária?

VOZES

"Richterrorschach" - M. Reggie Aquara

E nesta reflexão, senti uma desconfiança, como que uma voz a sussurrar-me ao ouvido. Uma certeza incómoda de que algo não está bem com a nossa tónica, de que não é bem por aqui que devemos ir, que estamos a dar centralidade ao que é periférico e a conferir um estatuto de fundamental àquilo que é apenas superficial.

O que diz o sussurro? Inconveniente como o raio, faz perguntas extremamente incómodas. Por exemplo:

Como validamos o nosso ministério sem eventos? Será que estamos a medi-lo pela quantidade de actividades que organizamos ou acontecem sob a nossa supervisão? Estaremos nós a tentar usar as nossas obras como bandeiras de sucesso e de legitimação pessoal? Afinal, como nos validamos a nós próprios se não fizermos coisas, e mais importante ainda, se não houver gente em bom número a assistir ao que fazemos e a validar-nos? Se não for sobre eventos e actividades, vamos viver sobre o quê?

É muito assustador. Dependendo da resposta a estas perguntas, podemos estar efectivamente a justificar a nossa existência pelo que fazemos, e, mais grave, a tirar a glória e o lugar fundamental a Deus, em última análise.

Mas depois há outros sussurros, outras vozes. Estas encarregam-se de pôr alguma água na fervura, e dizem que se calhar estou a ser excessivamente melodramático; afinal, as pessoas precisam que lhes dirijamos "coisas". Como vão as crianças sobreviver sem retiros? Ou os jovens sem concertos? Ou os casais sem workshops? Ou os natais sem produções? Ou as mamãs e os papás sem dias assinalados com programas especiais? De facto, as pessoas precisam que as alimentemos e cuidemos com este tipo de coisas, certo? Se não lhas oferecermos produtos de consumo eclesial, estaremos a falhar como líderes. Certo? Errado. 

 

LUZES

Jesus não nos chamou para sermos organizadores de eventos, mas discípulos Seus que fazem discípulos para Si. Certo? Certo. E ser discípulo é caminhar com Ele, dedicando-lhe a vida todos os dias, na família, no trabalho, na escola. Na comunidade religiosa também, e para isso é necessário organizar actividades em que as pessoas se reúnem e fazem coisas em conjunto, sem dúvida (ou não fossem as próprias reuniões dominicais também elas eventos). Mas a partir do momento em que essas actividades engolem a vida de discípulo - e engolem antes de se perceber, por isso não assumamos já que estamos bem, por favor! - está tudo absolutamente estragado. Sim, a vida de discípulo é subtilmente engolida pelos monstros tão sedutores da organização, da administração, da gestão, do marketing e da divulgação. E esta vida de discípulo engolida reflecte-se lamentavelmente também nas pessoas que vamos esmagando e matando com a nossa exigência de rigor (ai, a bendita e idolatrada qualidade) e atordoando com o nosso stress, bem como na desgraçada vida familiar.

No meio de todas essas dimensões dos eventos, não estamos para isso de ser discípulos e desfrutar da presença de Cristo, deleitados no passar tempo diariamente com Ele. Somos apenas Martas, nunca Marias. Não estamos para isso não apenas por falta de tempo, mas porque o que nos estimula mesmo já passaram a ser os próprios eventos, que se tornam fins em vez de meios. São eles que nos trazem realização e reconhecimento, por oposição a esta vida de "caminhar com", que ninguém vê, que é uma seca, sem luzes, sem brilho, sem "parabéns, foi muito bom!". 

Também não fazemos discípulos, porque isso é ainda mais chato. Ter gente em casa, acompanhar pessoas, conversar sobre a vida, ouvir opiniões contrárias, de gente que não se toca nem cresce, não altera o seu comportamento como nós achamos premente, mas que amamos pacientemente mesmo assim. Não, enche-nos muito mais o coração dar pão e circo a massas humanas que aplaudem e nos dão os parabéns no fim.

Bom, se calhar estou a ser mauzinho, e nem todos concordarão com um cenário tão negativo. Mas de qualquer forma, vozes e opiniões à parte, acho que todos podemos concordar que existe este risco: o de nos afirmarmos como profissionais da religião, destacando programas, eventos e aparências, e esquecendo o mais importante - Deus e o seu processo glorioso na nossa vida e na vida das pessoas com quem interagimos.

O QUE SE VÊ É TRANSITÓRIO

 

 "A matter of time" - Kathleen Parker

Como escreveu o apóstolo Paulo: 

Por isso não desfalecemos; mas, ainda que o nosso homem exterior se corrompa, o interior, contudo, se renova de dia em dia. Porque a nossa leve e momentânea tribulação produz, para nós, um peso eterno de glória mui excelente; Não atentando nós nas coisas que se vêem, mas nas que se não vêem; porque as que se vêem são temporais, e as que se não vêem são eternas. - 2 Coríntios 4:16-18 ARC

 

Ainda que o Apóstolo Paulo estivesse a falar de dificuldades e sofrimentos, creio que as suas palavras valem para a nossa discussão: as coisas que se vêem são temporais, e as que não se vêem, eternas. Então porque investimos tanto e tanto e tanto naquilo que se vê? Na imagem, na qualidade, no rigor, na agenda, no que fazemos para supostamente darmos substância ao nosso chamado? De que vale isso tudo sem sermos e fazermos discípulos? Sem Deus? Segundo a Bíblia nada, segundo a cultura evangélica de vanguarda, quase tudo (quase, porque Deus fica com um cantinho quando fazemos uma oração patética a pedir para Deus abençoar esta máquina toda que montámos, ou quando, no fim dos ensaios ou actividades, nos despedimos exaustos numa oração ritualista; ou ainda no chavão final - a cereja no topo do bolo - de que "é tudo para glória de Deus").

 O que se vê é passageiro e superficial; o que é verdadeiramente central é Deus e a Sua obra, sobrenatural e contínua, no contexto da comunhão que desenvolvemos uns com os outros, e juntos com Deus. Não é possível dar a este processo a relevância que merece numa cultura de eventos. E mesmo se os eventos forem colocados no seu devido lugar, têm de ser constantemente vigiados, porque os monstros modernos da organização estão sempre à espreita. (sim, considero que os eventos têm o seu lugar, não estou a advogar uma vida eremítica, de pura contemplação - pelo menos para já, não sei onde vou estar daqui a uns anos :D ). 

 

Está quase tudo dito para já. Mas antes de terminar, só um enquadramento final:

CULTURA DO SUCESSO

"The price of success" - Victoria North

Vivemos numa cultura que privilegia e idolatra o sucesso. Se não concretizamos a nossa vida em elementos materiais e palpáveis, achamos impossível ter noção da qualidade dos processos. É obrigatório apresentar resultados visíveis, sob pena de se ser vítima de uma avaliação negativa e reprovado! E se formos reprovados, valemos o quê? Nada! Resultado: desmotivação; frustração; depressão.

Mas graças a Deus porque o Seu Reino não se detém em resultados de avaliações; Jesus comparou-o a uma semente de mostarda: quase invisível, mas gerando Vida interior abundante naqueles que por ele são tocados - e isto apenas no tempo apropriado; este processo não pode ser apressado por projectos com prazos e deadlines! Os rios de água viva que correm no ventre dos amados de Deus não estão à mercê de fórmulas ou instrumentos de medição ou avaliação. A obra de Deus não é controlável ou mensurável por métodos humanos. Tentarmos que o seja é simplesmente pecado. Alicerçar o nosso valor pessoal e o dos outros em eventos (que são, no fundo, realizações humanas) também. Porquê pecado?

 SALPICOS DE GRAÇA

  "Water drop" - Dick Stolp

O que é verdadeiramente trágico nisto tudo é o desperdício que constitui. Deitamos fora a maravilhosa graça de Deus ao querermos controlar os processos sozinhos, com Deus como espectador ou mero abençoador - assim, os eventos podem facilmente não ser mais do que instrumentos de controlo, de administração humana do Reino. Que contradição, que distorção, que tristeza! Deus oferece-nos a Sua presença, na qual há delícias perpetuamente; nós preterimo-la por fogos de artifício. Deus oferece-nos comunhão, nós colocamos o foco na gestão. Deus oferece-se para carregar os nossos fardos e dar-nos alívio, nós preferimos fazer orbitar a nossa vida em torno de pressões para o sucesso dos nossos empreendimentos. Na realidade, mais do que um desperdício, trata-se de uma afronta grave e rejeição do próprio Cristo e do Seu sacrifício na cruz. Pecado.

Finalmente, para ficar bem esclarecido, convém dizer mais uma vez, os fogos de artifício, a gestão e os prazos podem ter o seu lugar (não advogo aqui que estes instrumentos sejam eliminados - ainda que ninguém morreria se o fossem); mas a um nível muito residual e delimitado, sempre sujeito a vigilância, para que os monstros não acordem e nos devorem antes que tenhamos tempo para disso nos apercebermos. Para que nada nos impeça de viver da forma mais plena possível a graça de Deus. 

É que a vida da salvação, isto é, o processo contínuo e diário em que consiste a salvação, é pela graça, por meio da fé; não vem de obras [eventos?] para que ninguém se gabe das suas realizações.


One comment

Acho que foi realmente sobrenatural esta reflexão! Porque algo assim, só revelado! Muito obrigado. Também eu me sinto farta de eventos, mas estes pensamentos levaram-me também a outras áreas da minha vida em que muitas vezes impera o orgulho e a auto satisfação. obrigado e que o Senhor continue a revelar e a revelar-Se a si. Abraço

by Unknown on 30 de outubro de 2018 às 10:13. #

Leave your comment