A incrível obsessão evangélica com as festas de natal

by Unknown on sábado, 19 de dezembro de 2015


 

Há algum tempo escrevi um post sobre "A incrível obsessão evangélica com eventos", e agora vou afunilar e escrever sobre "A incrível obsessão evangélica com as festas de natal". Dá vontade de criar uma colecção tipo "Anita" ou "Uma aventura...", mas com o título "A incrível obsessão evangélica com...". E acho que material não iria faltar :D

 

KOINONIA!

Mas agora a sério...O que tenho eu contra festas de natal? Nada. Assim como não tenho nada contra festas de Páscoa, de Pentecostes, de Dia da Reforma, de Dia da Bíblia, de Dia da Mãe, do Pai, do Avô e da Avó, dos netos. Ah, e já agora, de Ano Novo, de santos populares, de carnaval, etc etc etc etc. Aliás, para mim, quanto mais festas melhor, porque gosto de comunhão, de relacionamentos, de estar com pessoas. Koinonia, digo eu! E também há coisas que, claro, vale a pena assinalar. E claro, mais importante: são pretextos óptimos para convidar gente descrente para estar connosco. Sim, porque os nossos cultos nunca serviriam para isso, cruz credo!

Pois é, o natal é uma dessas datas. Mas o problema é que, ao contrário da Páscoa e do desgraçado do Pentecostes, o natal é o nosso auge (estava quase a usar aqui outra palavra, mas não, fica esta). É o nosso highlight de todo um ano de actividades, a nossa coqueluche! E o que é que acontece? Acontece que para se assinalar uma data, em muitas comunidades, põem-se os relacionamentos na prateleira durante os meses de setembro a dezembro, que é para entrarmos numa bolha de ensaios e de cantorias que nos fazem o inestimável serviço de nos separar do mundo lá fora mais um bocadinho, e nos enclausurar ainda mais na cápsula cristã, alheando-nos daqueles a quem supostamente queremos alcançar com as nossas mega-produções. [Pausa para respirar aqui - Selah....]

 

O MEU HISTORIAL COM FESTAS DE NATAL

Depois de anos a matar-me a mim e a outras pessoas com ensaios, tomei uma decisão: para mim chega. Dirigi-me ao meu Pastor, que me aturou nesta como em outras ocasiões, e fi-lo nestes termos: respeito a vossa opção por este formato e modelo de festa, mas eu estou fora de contribuir para organizar eventos que exigem de uma comunidade de 50 pessoas um esforço e um investimento maiores do que os recursos (físicos e emocionais) que temos. E além disso, disse eu, acho que não será necessário organizar mega-eventos para atrair pessoas, é só convidarmo-las para jantar ou tomar um café, viver a nossa fé com compaixão e hospitalidade, e o Espírito fará o resto. 

 

A MENSAGEM

É que na minha opinião, o problema não são as festas, é entusiasmarmo-nos a r de pé espectáculos que são concebidos, na sua génese, com um único propósito: oferecer entretenimento às massas (e no processo, residualmente, fazer-nos inchar o ego, com tão boas produções que somos capazes de montar)

Claro que há uma mensagem muito importante para passar: nasceu o Salvador! Mas como somos cristãos a tempo inteiro, essa mensagem está sempre a ser passada, durante todos os dias do ano, através da nossa vida, das nossas palavras, do nosso andar, do nosso respirar. Nós cristãos, somos a encarnação do Evangelho de Cristo!...ou não somos? Ah, pois, se não somos, então se calhar precisamos de festas...e bem megalómanas, para fazermos nós num dia aquilo que não damos oportunidade ao Espírito Santo para fazer através de nós num ano, ano após ano após ano....peço desculpa, erro meu...

 

BOAS INTENÇÕES

Não quero com estas ironiazitas, de maneira alguma, ser desrespeitoso...tenho genuíno respeito por pessoas que trabalham arduamente nas igrejas, que servem com o seu tempo e talentos para que algo do Evangelho possa ser transmitido aos outros e, quem sabe, produzir algo transformador na vida de pessoas que ainda não conhecem Cristo. Mas, com toda a compaixão, quero dizer que me vem sempre à memória o Faraó a mandar os hebreus trabalharem (Exodo 5)...aumentai-lhes a carga, dizia ele aos capatazes, para que eles não tenham tempo para pensar em liberdade...e penso no diabo - do qual o Faraó é figura - a dizer aos demónios: ponham-nos a produzir, a trabalhar arduamente para o show, o espectáculo, a performance, para que eles, no meio da exaustão e/ou da adrenalina, não tenham tempo para pensar na liberdade sublime que existe na simples comunhão em redor de uma mesa, na qual estão sentados Jesus e os irmãos.

 

iME GUSTA LA NAVIDAD!

Termino dizendo que gosto do natal. Gosto mesmo. De jantar com a malta, de fazer convívios, e não acho mal usar o natal como pretexto (desde que não seja só no natal que nos lembramos das ditas pessoas, claro). Isso sim, vale a pena. Os relacionamentos valem a pena, o contacto humano, com tempo e descontraído, baseado numa vida de comunhão diária com Deus, com Jesus, no qual há descanso..os únicos mega eventos que Jesus organizou foram refeições. Milhares de pessoas, tudo a comer. Não é lindo?

Então, bom natal. De preferência bem perto de pessoas, com Jesus como Pessoa principal e central; e não apenas como menino, mas como o Homem-Deus que conseguiu para nós a liberdade.


Para uma teologia das férias!

by Unknown on domingo, 9 de agosto de 2015




Pois é, chegou aquela altura do ano... a mais ansiada de todas as épocas, na mais colorida de todas as estações: as benditas férias de verão. E este ano - não sendo a primeira vez - bateu-me com mais força a questão: as férias são bíblicas? E se sim, qual a teologia que as apoia?


UMA QUESTÃO DELICADA

É uma questão delicada, esta; é que poderia bem acontecer não haver base bíblica para as férias... e depois, como lidar com o sentimento de culpa acrescido? Emocionalmente, seria uma verdadeira tragédia. E, à primeira vista, não há nada de bíblico nisto! Nem o novo nem o velho testamento falam de turismo ou veraneio - acho que a fuga do Egipto ou o exílio na Babilónia não contam; e como imaginar Jesus a tirar uma selfie com um monumento qualquer como pano de fundo, ou Paulo na praia a pedir para Barnabé lhe passar o protector solar (que já é meio dia, e o sol está muito forte)? Impossível!


BIBLIA

O próprio Jesus disse que as raposas têm covis, e os pássaros têm ninhos, mas o filho do homem não tem onde reclinar a cabeça - um duro discurso para quem vai reclinar ou já reclinou a cabeça (e pouco mais do que isso) durante 15 dias, e de preferência sem interrupções. Na realidade, temos nós o direito de parar tudo durante 15 dias, para passar os dias a descansar?
Como arrumar esta questão?Bom, falar de férias é falar de interrupção do trabalho, portanto, podemos partir daqui. Como analisar então estes conceitos à luz da Bíblia? E como se processavam os ciclos trabalho/descanso nos tempos bíblicos?


ROTINA DIÁRIA

Na cultura israelita, o trabalho era do nascer ao pôr do sol. A duração do dia determinava a extensão do período laboral, perfazendo 2 blocos de mais ou menos 12 horas, um para trabalho e outro para descanso. Hoje, graças à tecnologia, eliminámos as fronteiras entre tempos de trabalho e tempos de descanso. Primeiro, com a revolução industrial, prolongámos o período de luminosidade necessário para levar a cabo as tarefas, e livrámo-nos da necessidade de força animal que exigia paragens para descanso (ao que parece, o workaholism é um fenómeno exclusivamente humano). Depois, com o advento da Internet, e das outras maravilhas da tecnologia - os dispositivos portáteis, como laptops, tablets e smartphones - arranjámos forma de ter sempre connosco, 24h por dia, o nosso escritório, com todos os respectivos utensílios. Uma vida vertiginosa, sem espaço nem tolerância para paragens!


ROTINA SEMANAL

Na cultura israelita, o sábado era sagrado, e obrigatoriamente dedicado ao descanso (um mandamento expresso da parte de Deus). E ai de quem se atrevesse a sequer carregar um simples leito, mesmo que lá tivesse estado deitado durante 38 anos; era de imediato  severamente advertido pela polícia religiosa, os nossos amigos fariseus. Mais recentemente, já nos tempos do Novo Testamento, o domingo foi escolhido como dia de culto, e chamado o dia do Senhor, por ser o dia da ressurreição de Jesus Cristo. O sábado deixou, assim, de ser o dia de paragem obrigatória.
E hoje? Bem, hoje, a nossa cultura encarregou se de diluir tanto o sábado como o domingo numa miscelânea de actividades que, mesmo sendo, muitas vezes, relacionadas com práticas religiosas, são trabalho puro e duro. Claro que vamos tentando, com as nossas racionalizaçõezecas doutrinárias, acalmar a nossa consciência: "já não somos escravos da lei religiosa; no tempo da Graça, não somos mais obrigados a observar dias sagrados". Mas no fundo, sabemos que nos tornámos escravos de outra lei,  a lei cultural, do consumismo e do tempo útil; e que não apenas eliminámos os dias sagrados, mas também o carácter sagrado da vida: em nome das tarefas - cujo completamento é  a nossa glória - deixamos de desfrutar da vida, para apenas a fazer funcionar. E isto em todas as suas dimensões; principalmente no que diz respeito à nossa comunhão com Deus, com a comunidade, a vida familiar, o trabalho, o descanso. Transformámos a vida abundante numa massa disforme.


FÉRIAS
 
Ok, até aqui falamos de rotinas e ciclos do dia a dia; e quanto a interrupções por períodos longos como as que nós chamamos férias hoje? Bom, só pelo que dissemos até aqui, já se justifica uma paragem prolongada, que nos permita fugir, ainda que temporariamente, desta loucura. Mas poderia ser argumentado, com razão, que as férias seriam, então, nada mais que a tentativa de corrigir um erro com outro erro.
Mas a verdade é que, na cultura israelita, também havia períodos de paragem prolongada: eram as festas anuais, prescritas por Deus ao povo. Eram 7, no total, e seguem-se os seus nomes, e respectivas durações:
* Páscoa, Pães Ázimos e Primícias (9 dias no total)
* Pentecostes (1 dia)
* Trombetas(1 dia)
* Tabernaculos (7 dias)
Não tenho tempo para falar aqui do significado de cada festa (afinal, estou de férias), mas em todas estas paragens - que não envolviam necessariamente turismo ou veraneio, já chegaremos aí - estavam a ser trabalhadas 3 dimensões fundamentais ao ser humano:
* Dimensão psicológica/individual:era suposto que, ao assinalar estas festas, cada pessoa reflectisse sobre o que Deus tinha feito no passado, e aprofundasse a sua devoção como indivíduo, beneficiário da obra de Deus enquanto membro do Seu povo eleito.
* Dimensão comunitária/social: estas ocasiões suscitavam a memória colectiva, celebrando o mover de Deus na comunidade, que, unida no mesmo espírito, lhe prestava a devida honra por todas as suas maravilhas
* Dimensão religiosa/espiritual: obviamente, o Deus das glórias passadas, é o mesmo Deus do tempo presente, e era suposto que nas festas, Ele voltasse a ser enquadrado como o fundamento de toda a realidade e assumisse toda a centralidade. Ele é aquele que de facto, dá sentido e organiza todas as dimensões da vida, e é preciso parar regularmente para renovar a consciência disso.


EM SUMA...


Estas paragens obrigatórias, em que os ciclos laborais paravam ou abrandavam severamente, representavam oportunidades para um reencontro da pessoa consigo própria, com a comunidade e com o Deus de todas as esferas e estações da vida.
Mas actualmente, fazemos das férias exactamente o contrário! Em vez de as aproveitarmos para levar a cabo esse reposicionamento, usámo-las como oportunidade de fuga desses mesmos elementos: fugimos, em primeiro lugar, da comunidade, que nos lembra de rotina e responsabilidade; também de nós próprios - queremos parar de funcionar, que dá muito trabalho (de preferência parar de ser quem somos, estamos fartos de levar connosco e com as nossas vidas); mas queremos principalmente fugir de Deus, que é quem nos põe em contacto com a realidade. E não é senão natural querer fugir dele, porque é nele que vivemos, nos movemos e existimos no nosso quotidiano; se queremos romper com a vida quotidiana, temos também de romper com Deus.
Então, sejamos honestos: vamos de férias também porque precisamos de fugir: mas a fuga cristã é só um meio para atingir um fim; o nosso compromisso com Deus, exige que façamos das férias de Verão um retiro espiritual (a sério!) em que tentamos renovar o nosso posicionamento perante a vida em todas as suas dimensões, e as submetemos a Deus, o Senhor, por direito, de todas elas.

Então, que estas férias sirvam não para uma desagregação da vida e uma fuga de Deus, mas para um renovar do nosso continuo encontro com ele, e, assim, connosco próprios, e com aqueles com quem somos um só.

Boas férias!

Pensées II - sobre a teologia reactiva

by Unknown on quinta-feira, 16 de julho de 2015




Segue a onda Pascaliana, e debitam-se alguns pensées*, desta vez sobre teologia reactiva. Passando a explicar:

A pergunta central aqui é: devemos pensar teologicamente de uma forma reactiva, isto é, reagindo apenas a ideias que queremos combater? Ou apenas devemos agir, proclamar o que cremos, de acordo com aquilo que positivamente pensamos e não em reacção àquilo de que negativamente discordamos?

O primeiro pensée em relação a isto é que não podemos viver só a reagir, como baratas tontas, a correr atrás do prejuízo. Não nos podemos deixar definir por ser contra o que quer que seja. O segundo, bastante óbvio também, é que a Bíblia, e em particular o Novo Testamento, está cheia de reacções. Paulo reage a situações das quais discorda em praticamente todas as cartas. O mesmo se passa com João, Pedro, Judas, Tiago. Os próprios Evangelhos contêm algumas reacções a ideias e boatos emergentes na Igreja do primeiro século.

Então, se não nos podemos definir por ser contra coisas, também não podemos ficar indiferentes ao que se passa, apenas agindo, enquanto em vários círculos, o Evangelho é distorcido, instrumentalizado, banalizado, neutralizado, relativizado. Considero uma ofensa pessoal a distorção do Evangelho de Cristo. Uma ofensa à qual quero responder com Amor - terceiro pensée. Sim, quando o Evangelho é atacado, sentimo-nos insultados, mas respondemos entregando a outra face. E pegando na pena de pato, como os autores bíblicos. Ou então criando um blog e batendo texto. De preferência malhando nas teclas com força.
É verdade que a teologia reactiva - 4º pensée - denuncia sempre também uma componente humana. Falamos da parte de Deus, mas também falamos como homens. Isto não é só zelo pelo Evangelho. Detestamos que nos façam de parvos, que atirem com má fé areia para os nossos olhos e os das outras pessoas. E escrevemos exposições, enviamos cartas, e preparamos palestras. 
Mas vamos concretizar? Vamos. Por exemplo, o "casamento" homossexual. Um bom exemplo de um tema actual, em que uma cuidadosa e bem planeada engenharia social lavou (ou melhor, sujou) os cérebros e as mentalidades. O "casamento" homossexual representa a institucionalização do pecado, a negação oficial da santificação bíblica, a distorção do Evangelho que consiste na Salvação das trevas para a luz, e não na celebração das trevas. E tudo para que uma minoria possa ser aliviada na sua consciência (o que, já agora, não acontece nem vai acontecer, porque a dor de alguém que sofre de homossexualidade é quase totalmente intrínseco, vem de dentro; e vai continuar presente, mesmo se um dia toda a gente no mundo - incluindo cristãos - concordarem e celebrarem a homossexualidade). Contra isso - e não só - reajo. Mas isto é só um exemplo! Tenho muitas outras palestras preparadas ;)

Uma ressalva (que constitui o quinto pensée): há uma forma de reagir que é mecânica e pobre. Como se alguém carregasse nos nossos botões e obtivesse uma resposta automática, um reflexo. Isso é reflexividade pavloviana, não reactividade.

Também reconheço que, muitas vezes, o melhor é mesmo não reagir - sexto e último pensée. Ficar calado como Cristo, sofrer calado como Cristo, ser injustiçado calado, como Cristo. Adoptar esta atitude faz parte da caminhada da cruz. Mas também é necessário saber argumentar como Jesus argumentou, saber fazer pensar como Jesus fez, e principalmente, saber reagir como Jesus nos ensinou a reagir -  se alguém pecar contra ti, vai falar com ele - reage! - e se ele te ouvir ganhaste o teu irmão. Se não te ouvir, mete mais gente ao barulho. E se ele se mostrar obstinado, então age com ele como se ele não fosse crente (Mateus 18:15-18). Por outras palavras, ajusta as tuas reacções à medida dos teus interlocutores, contextualiza-te, não sejas um autómato!

Para concluir, deixo aqui e reitero a mais importante mensagem que se pode transmitir sobre este tema: reajamos, mas reajamos com amor. Não com ódio, não apenas por irritação, não com os nervos à flor da pele. Olhemos para Cristo, e deixemos que, quando for mesmo necessário reagir, Ele nos ajude a perceber isso e nos ensine a reagir à Sua imagem e semelhança. E que em todo o tempo possamos agir, caminhando e amando, para que seja o Evangelho a definir-nos. E Deus nos livre de darmos por nós, no zelo de defender o Evangelho, a ser definidos e a deixarmo-nos apanhar por aquilo do qual queríamos, em primeiro lugar, proteger o Evangelho.


* Pensamentos (em francês: Pensées) é uma obra do físico, filósofo e teólogo francês Blaise Pascal (1623-1662). A obra foi escrita com o intuíto de defender o cristianismo e foi publicada postumamente em 1670.
 

Pensées I - sobre a teologia da escassez

by Unknown


Com esta coisa toda da crise na Grécia e a nossa (já longa) história de austeridade, tenho pensado bastante sobre a teologia das dificuldades financeiras. E no espírito de Pascal*, venho debitar aqui alguns pensées sobre a teologia da escassez financeira. Pensando em perguntas como "de que forma viver?", "que postura adoptar?", ou "onde está Deus nas dificuldades financeiras?", dou aqui o mote para uma reflexão que se quer mais aprofundada e menos simplista. Mas para já, por aqui, é o que se arranja.
 
Antes de mais, sou um menino nestas coisas das dificuldades. Sou um privilegiado. Sou um ocidental, um europeu, um português, com família que ajuda, com subsídios, apoios, segurança social, hospitais, Banco Alimentar, etc, etc, etc. Por isso, falo com uma experiência pouco intensa de quem apenas passou por alguns tempos de relativa escassez. Nunca passei fome, e isso faz de mim um menino-bem neste mundo. E este é o primeiro pensée sobre isto: a escassez só invalida a gratidão na inconsciência de quem só vê o seu próprio umbigo.

O segundo pensée é este: quando entramos num modo de constantemente nos queixarmos da nossa vida financeira, estamos, em última análise a queixarmo-nos de Deus e/ou de nós próprios. 

1) De Deus porque agimos e falamos como se Ele não fosse soberano e fosse apanhado de surpresa com crises que nos afectam. Claro que o governo é corrupto, a máquina política está à mercê dos grandes grupos económicos, os ricos enriquecem mais ainda, os pobres empobrecem na mesma proporção... tudo isso está mal. Mas e Deus? Está a dormir? Não antecipou a crise? Esqueceu-se de cuidar de nós? De cumprir as suas promessas? Mateus 6, meus amigos, Mateus 6!

2) Ou então de nós, se tivermos alguma razão de queixa relativamente às eventuais escolhas que possamos ter feito. Sem ir mais longe, somos nós que escolhemos precisar de carro(s), telemóvel/eis, pacotes de internet/tv/telefone, tablets, PCs, ir a restaurantes de vez em quando, férias no verão, presentes caros no natal. Quem escolheu este estilo de vida? Nós. Se temos de nos matar a trabalhar para pagar este estilo de vida (e nunca chega), isso é consequência da nossa decisão de manter algumas dessas coisas como prioritárias. Em última análise, a decisão de precisar destas coisas é nossa, não de Deus. Mais aberrante do que isso são factos como a nossa falta de generosidade, que revela o quão absurdas são as nossas prioridades como cristãos. Leonard Ravenhill dizia que os cristãos gastam mais em comida de cão do que dão para organizações missionárias. E ainda que não tenhamos números, penso que não temos dúvidas disto (comida de cão é apenas um exemplo das várias futilidades que colocamos como prioritárias em relação à contribuição que podemos dar para o avanço do Reino de Deus).
Sei que estou a ser extremamente simplista - na realidade, estas necessidades não foram só escolha nossa, em parte também nos foram criadas - mas gostava de provocar alguma reflexão sobre o estilo de vida a que nos obrigamos a aderir de forma mais ou menos inconsciente. E a realidade inegável é que há um montão de coisas que temos a certeza que nos são essenciais, mas não são. Vivemos bem - porventura até melhor - sem algumas delas. Não advogo necessariamente um despojamento monástico dos bens materiais, mas uma relativização, ao nível do nosso entendimento, daquilo que são supostamente as nossas necessidades (e depois de pensarmos sobre isto e ganharmos esta consciência, acresce-nos um pouco a responsabilidade).

O terceiro pensée, relacionado com o anterior, é que podemos muito bem não ter porque "pedimos mal, para gastarmos nos nossos próprios deleites" (Tiago 4:3). É que Paulo assume que "Deus pode fazer-nos abundar em toda graça, a fim de que, tendo sempre, em tudo, ampla suficiência, superabundemos em toda boa obra”. Significa que na Bíblia encontramos uma certa teologia da escassez muito voltada para a utilização que damos aos recursos. 
Claro que isto não é mecânico, como por vezes algumas pessoas o pintam - "dá dinheiro e Deus não terá outro remédio senão recompensar-te". Como se Deus não tivesse vontade própria e nós o pudéssemos manipular (por exemplo, o mesmo Paulo passou dificuldades financeiras graves e viu isso como instrução, não como uma atitude errada da sua parte relativamente às intenções de utilização dos recursos). Isto leva-nos ao quarto pensée.

O quarto e mais duro pensée é que sem dificuldades (também financeiras) não somos aperfeiçoados na fé. Confiar em Jesus e andar sobre as águas, querer ser como o mestre e tomar a cruz, (viver no mundo!) tem um ingrediente essencial: aflições. Afinal, se dizemos a Deus: "Pai, ensina-me a ser como Jesus", esperamos o quê? Só passeios à beira mar? Não, Jesus não vivia só isso. Jesus viveu como um sacrifício vivo. Mas há uma boa notícia: Ele sempre estará connosco, nunca nos abandonará. Graças a Deus.

Deus nunca nos abandonará. E no fim de tudo isto, damos à Bíblia o pensée final, já que é sempre ela que nos dá a definitiva orientação. E a definitiva orientação da Palavra inspirada de Deus para esta questão da escassez parece-me ser esta:

I Pedro 5:6,7
Humilhai-vos, pois, debaixo da potente mão de Deus, para que, a seu tempo, vos exalte; Lançando sobre ele toda a vossa ansiedade, porque ele tem cuidado de vós.  

Submetamo-nos humildemente a Deus. A seu tempo, coisas boas irão acontecer. Por enquanto, o nosso papel é confiar.

* Pensamentos (em francês: Pensées) é uma obra do físico, filósofo e teólogo francês Blaise Pascal (1623-1662). A obra foi escrita com o intuíto de defender o cristianismo e foi publicada postumamente em 1670.
 

Humilhai-vos, pois, debaixo da potente mão de Deus, para que a seu tempo vos exalte;
Lançando sobre ele toda a vossa ansiedade, porque ele tem cuidado de vós.
1 Pedro 5:6,7
Humilhai-vos, pois, debaixo da potente mão de Deus, para que a seu tempo vos exalte;
Lançando sobre ele toda a vossa ansiedade, porque ele tem cuidado de vós.
1 Pedro 5:6,7
Humilhai-vos, pois, debaixo da potente mão de Deus, para que a seu tempo vos exalte;
Lançando sobre ele toda a vossa ansiedade, porque ele tem cuidado de vós.
1 Pedro 5:6,7

A incrível obsessão evangélica com os eventos

by Unknown on segunda-feira, 6 de julho de 2015



Há algum tempo atrás, apeteceu-me reflectir sobre a incrível e tão actual obsessão evangélica com eventos. Porque os fazemos, o que lhes dá substância, e principalmente, porque é que há tantos e com um lugar tão proeminente na nossa vivência comunitária?

VOZES

"Richterrorschach" - M. Reggie Aquara

E nesta reflexão, senti uma desconfiança, como que uma voz a sussurrar-me ao ouvido. Uma certeza incómoda de que algo não está bem com a nossa tónica, de que não é bem por aqui que devemos ir, que estamos a dar centralidade ao que é periférico e a conferir um estatuto de fundamental àquilo que é apenas superficial.

O que diz o sussurro? Inconveniente como o raio, faz perguntas extremamente incómodas. Por exemplo:

Como validamos o nosso ministério sem eventos? Será que estamos a medi-lo pela quantidade de actividades que organizamos ou acontecem sob a nossa supervisão? Estaremos nós a tentar usar as nossas obras como bandeiras de sucesso e de legitimação pessoal? Afinal, como nos validamos a nós próprios se não fizermos coisas, e mais importante ainda, se não houver gente em bom número a assistir ao que fazemos e a validar-nos? Se não for sobre eventos e actividades, vamos viver sobre o quê?

É muito assustador. Dependendo da resposta a estas perguntas, podemos estar efectivamente a justificar a nossa existência pelo que fazemos, e, mais grave, a tirar a glória e o lugar fundamental a Deus, em última análise.

Mas depois há outros sussurros, outras vozes. Estas encarregam-se de pôr alguma água na fervura, e dizem que se calhar estou a ser excessivamente melodramático; afinal, as pessoas precisam que lhes dirijamos "coisas". Como vão as crianças sobreviver sem retiros? Ou os jovens sem concertos? Ou os casais sem workshops? Ou os natais sem produções? Ou as mamãs e os papás sem dias assinalados com programas especiais? De facto, as pessoas precisam que as alimentemos e cuidemos com este tipo de coisas, certo? Se não lhas oferecermos produtos de consumo eclesial, estaremos a falhar como líderes. Certo? Errado. 

 

LUZES

Jesus não nos chamou para sermos organizadores de eventos, mas discípulos Seus que fazem discípulos para Si. Certo? Certo. E ser discípulo é caminhar com Ele, dedicando-lhe a vida todos os dias, na família, no trabalho, na escola. Na comunidade religiosa também, e para isso é necessário organizar actividades em que as pessoas se reúnem e fazem coisas em conjunto, sem dúvida (ou não fossem as próprias reuniões dominicais também elas eventos). Mas a partir do momento em que essas actividades engolem a vida de discípulo - e engolem antes de se perceber, por isso não assumamos já que estamos bem, por favor! - está tudo absolutamente estragado. Sim, a vida de discípulo é subtilmente engolida pelos monstros tão sedutores da organização, da administração, da gestão, do marketing e da divulgação. E esta vida de discípulo engolida reflecte-se lamentavelmente também nas pessoas que vamos esmagando e matando com a nossa exigência de rigor (ai, a bendita e idolatrada qualidade) e atordoando com o nosso stress, bem como na desgraçada vida familiar.

No meio de todas essas dimensões dos eventos, não estamos para isso de ser discípulos e desfrutar da presença de Cristo, deleitados no passar tempo diariamente com Ele. Somos apenas Martas, nunca Marias. Não estamos para isso não apenas por falta de tempo, mas porque o que nos estimula mesmo já passaram a ser os próprios eventos, que se tornam fins em vez de meios. São eles que nos trazem realização e reconhecimento, por oposição a esta vida de "caminhar com", que ninguém vê, que é uma seca, sem luzes, sem brilho, sem "parabéns, foi muito bom!". 

Também não fazemos discípulos, porque isso é ainda mais chato. Ter gente em casa, acompanhar pessoas, conversar sobre a vida, ouvir opiniões contrárias, de gente que não se toca nem cresce, não altera o seu comportamento como nós achamos premente, mas que amamos pacientemente mesmo assim. Não, enche-nos muito mais o coração dar pão e circo a massas humanas que aplaudem e nos dão os parabéns no fim.

Bom, se calhar estou a ser mauzinho, e nem todos concordarão com um cenário tão negativo. Mas de qualquer forma, vozes e opiniões à parte, acho que todos podemos concordar que existe este risco: o de nos afirmarmos como profissionais da religião, destacando programas, eventos e aparências, e esquecendo o mais importante - Deus e o seu processo glorioso na nossa vida e na vida das pessoas com quem interagimos.

O QUE SE VÊ É TRANSITÓRIO

 

 "A matter of time" - Kathleen Parker

Como escreveu o apóstolo Paulo: 

Por isso não desfalecemos; mas, ainda que o nosso homem exterior se corrompa, o interior, contudo, se renova de dia em dia. Porque a nossa leve e momentânea tribulação produz, para nós, um peso eterno de glória mui excelente; Não atentando nós nas coisas que se vêem, mas nas que se não vêem; porque as que se vêem são temporais, e as que se não vêem são eternas. - 2 Coríntios 4:16-18 ARC

 

Ainda que o Apóstolo Paulo estivesse a falar de dificuldades e sofrimentos, creio que as suas palavras valem para a nossa discussão: as coisas que se vêem são temporais, e as que não se vêem, eternas. Então porque investimos tanto e tanto e tanto naquilo que se vê? Na imagem, na qualidade, no rigor, na agenda, no que fazemos para supostamente darmos substância ao nosso chamado? De que vale isso tudo sem sermos e fazermos discípulos? Sem Deus? Segundo a Bíblia nada, segundo a cultura evangélica de vanguarda, quase tudo (quase, porque Deus fica com um cantinho quando fazemos uma oração patética a pedir para Deus abençoar esta máquina toda que montámos, ou quando, no fim dos ensaios ou actividades, nos despedimos exaustos numa oração ritualista; ou ainda no chavão final - a cereja no topo do bolo - de que "é tudo para glória de Deus").

 O que se vê é passageiro e superficial; o que é verdadeiramente central é Deus e a Sua obra, sobrenatural e contínua, no contexto da comunhão que desenvolvemos uns com os outros, e juntos com Deus. Não é possível dar a este processo a relevância que merece numa cultura de eventos. E mesmo se os eventos forem colocados no seu devido lugar, têm de ser constantemente vigiados, porque os monstros modernos da organização estão sempre à espreita. (sim, considero que os eventos têm o seu lugar, não estou a advogar uma vida eremítica, de pura contemplação - pelo menos para já, não sei onde vou estar daqui a uns anos :D ). 

 

Está quase tudo dito para já. Mas antes de terminar, só um enquadramento final:

CULTURA DO SUCESSO

"The price of success" - Victoria North

Vivemos numa cultura que privilegia e idolatra o sucesso. Se não concretizamos a nossa vida em elementos materiais e palpáveis, achamos impossível ter noção da qualidade dos processos. É obrigatório apresentar resultados visíveis, sob pena de se ser vítima de uma avaliação negativa e reprovado! E se formos reprovados, valemos o quê? Nada! Resultado: desmotivação; frustração; depressão.

Mas graças a Deus porque o Seu Reino não se detém em resultados de avaliações; Jesus comparou-o a uma semente de mostarda: quase invisível, mas gerando Vida interior abundante naqueles que por ele são tocados - e isto apenas no tempo apropriado; este processo não pode ser apressado por projectos com prazos e deadlines! Os rios de água viva que correm no ventre dos amados de Deus não estão à mercê de fórmulas ou instrumentos de medição ou avaliação. A obra de Deus não é controlável ou mensurável por métodos humanos. Tentarmos que o seja é simplesmente pecado. Alicerçar o nosso valor pessoal e o dos outros em eventos (que são, no fundo, realizações humanas) também. Porquê pecado?

 SALPICOS DE GRAÇA

  "Water drop" - Dick Stolp

O que é verdadeiramente trágico nisto tudo é o desperdício que constitui. Deitamos fora a maravilhosa graça de Deus ao querermos controlar os processos sozinhos, com Deus como espectador ou mero abençoador - assim, os eventos podem facilmente não ser mais do que instrumentos de controlo, de administração humana do Reino. Que contradição, que distorção, que tristeza! Deus oferece-nos a Sua presença, na qual há delícias perpetuamente; nós preterimo-la por fogos de artifício. Deus oferece-nos comunhão, nós colocamos o foco na gestão. Deus oferece-se para carregar os nossos fardos e dar-nos alívio, nós preferimos fazer orbitar a nossa vida em torno de pressões para o sucesso dos nossos empreendimentos. Na realidade, mais do que um desperdício, trata-se de uma afronta grave e rejeição do próprio Cristo e do Seu sacrifício na cruz. Pecado.

Finalmente, para ficar bem esclarecido, convém dizer mais uma vez, os fogos de artifício, a gestão e os prazos podem ter o seu lugar (não advogo aqui que estes instrumentos sejam eliminados - ainda que ninguém morreria se o fossem); mas a um nível muito residual e delimitado, sempre sujeito a vigilância, para que os monstros não acordem e nos devorem antes que tenhamos tempo para disso nos apercebermos. Para que nada nos impeça de viver da forma mais plena possível a graça de Deus. 

É que a vida da salvação, isto é, o processo contínuo e diário em que consiste a salvação, é pela graça, por meio da fé; não vem de obras [eventos?] para que ninguém se gabe das suas realizações.