Há algum
tempo atrás, apeteceu-me reflectir sobre a incrível e tão actual obsessão
evangélica com eventos. Porque os fazemos, o que lhes dá substância, e principalmente, porque
é que há tantos e com um lugar tão proeminente na nossa vivência comunitária?
VOZES
E nesta
reflexão, senti uma desconfiança, como que uma voz a sussurrar-me ao ouvido.
Uma certeza incómoda de que algo não está bem com a nossa tónica, de que não é
bem por aqui que devemos ir, que estamos a dar centralidade ao que é periférico
e a conferir um estatuto de fundamental àquilo que é apenas superficial.
O que diz o sussurro? Inconveniente como o raio,
faz perguntas extremamente incómodas. Por exemplo:
Como
validamos o nosso ministério sem eventos? Será
que estamos a medi-lo pela quantidade de actividades que organizamos ou
acontecem sob a nossa supervisão? Estaremos nós a tentar usar as nossas obras
como bandeiras de sucesso e de legitimação pessoal? Afinal, como nos validamos a nós próprios se não
fizermos coisas, e mais importante ainda, se não houver gente em bom número a
assistir ao que fazemos e a validar-nos? Se não for sobre eventos e
actividades, vamos viver sobre o quê?
É muito assustador. Dependendo da resposta a estas
perguntas, podemos estar efectivamente a justificar a nossa existência pelo que
fazemos, e, mais grave, a tirar a glória e o lugar fundamental a Deus, em
última análise.
Mas depois há outros sussurros, outras vozes.
Estas encarregam-se de pôr alguma água na fervura, e dizem que se calhar estou
a ser excessivamente melodramático; afinal, as pessoas precisam que lhes
dirijamos "coisas". Como vão as crianças sobreviver sem retiros? Ou
os jovens sem concertos? Ou os casais sem workshops? Ou os natais sem
produções? Ou as mamãs e os papás sem dias assinalados com programas especiais?
De facto, as pessoas precisam que as alimentemos e cuidemos com este tipo de
coisas, certo? Se não lhas oferecermos produtos de consumo eclesial, estaremos a
falhar como líderes. Certo? Errado.
LUZES
Jesus não nos chamou para sermos organizadores de
eventos, mas discípulos Seus que fazem discípulos para Si. Certo? Certo. E ser
discípulo é caminhar com Ele, dedicando-lhe a vida todos os dias, na família,
no trabalho, na escola. Na comunidade religiosa também, e para isso é
necessário organizar actividades em que as pessoas se reúnem e fazem coisas em
conjunto, sem dúvida (ou não fossem as próprias reuniões dominicais também elas eventos).
Mas a partir do momento em que essas actividades engolem a vida de discípulo -
e engolem antes de se perceber, por isso não assumamos já que estamos bem, por
favor! - está tudo absolutamente estragado. Sim, a vida de discípulo é
subtilmente engolida pelos monstros tão sedutores da organização, da
administração, da gestão, do marketing e da divulgação. E esta vida de
discípulo engolida reflecte-se lamentavelmente também nas pessoas que vamos
esmagando e matando com a nossa exigência de rigor (ai, a bendita e idolatrada qualidade) e atordoando com o nosso
stress, bem como na desgraçada vida familiar.
No meio de todas essas dimensões dos eventos, não
estamos para isso de ser discípulos e desfrutar da presença de Cristo,
deleitados no passar tempo diariamente com Ele. Somos apenas Martas, nunca Marias. Não estamos para isso não
apenas por falta de tempo, mas porque o que nos estimula mesmo já passaram a ser os
próprios eventos, que se tornam fins em vez de meios. São eles que nos trazem
realização e reconhecimento, por oposição a esta vida de "caminhar
com", que ninguém vê, que é uma seca, sem luzes, sem brilho, sem
"parabéns, foi muito bom!".
Também não fazemos discípulos, porque isso é ainda
mais chato. Ter gente em casa, acompanhar pessoas, conversar sobre a vida,
ouvir opiniões contrárias, de gente que não se toca nem cresce, não altera o
seu comportamento como nós achamos premente, mas que amamos pacientemente mesmo
assim. Não, enche-nos muito mais o coração dar pão e circo a massas humanas que
aplaudem e nos dão os parabéns no fim.
Bom, se calhar estou a ser mauzinho, e nem todos
concordarão com um cenário tão negativo. Mas de qualquer forma, vozes e
opiniões à parte, acho que todos podemos concordar que existe este risco: o de
nos afirmarmos como profissionais da religião, destacando programas, eventos e aparências,
e esquecendo o mais importante - Deus e o seu processo glorioso na nossa vida e na
vida das pessoas com quem interagimos.
O QUE SE VÊ É TRANSITÓRIO
"A matter of time" - Kathleen Parker
Como escreveu o
apóstolo Paulo:
Por isso
não desfalecemos; mas, ainda que o nosso homem exterior se corrompa, o
interior, contudo, se renova de dia em dia. Porque a nossa leve e momentânea
tribulação produz, para nós, um peso eterno de glória mui excelente; Não
atentando nós nas coisas que se vêem, mas nas que se não vêem; porque as que se
vêem são temporais, e as que se não vêem são eternas. - 2 Coríntios 4:16-18 ARC
Ainda que
o Apóstolo Paulo estivesse a falar de dificuldades e sofrimentos, creio que as
suas palavras valem para a nossa discussão: as coisas que se vêem são
temporais, e as que não se vêem, eternas. Então porque investimos tanto e tanto
e tanto naquilo que se vê? Na imagem, na qualidade, no rigor, na agenda, no que
fazemos para supostamente darmos substância ao nosso chamado? De que vale isso
tudo sem sermos e fazermos discípulos? Sem Deus? Segundo a Bíblia nada, segundo a cultura
evangélica de vanguarda, quase tudo (quase, porque Deus fica com um cantinho quando
fazemos uma oração patética a pedir para Deus abençoar esta máquina toda que montámos,
ou quando, no fim dos ensaios ou actividades, nos despedimos exaustos numa
oração ritualista; ou ainda no chavão final - a cereja no topo do bolo - de que
"é tudo para glória de Deus").
O que se vê é passageiro e superficial; o que é
verdadeiramente central é Deus e a Sua obra, sobrenatural e contínua, no
contexto da comunhão que desenvolvemos uns com os outros, e juntos com Deus.
Não é possível dar a este processo a relevância que merece numa cultura de
eventos. E mesmo se os eventos forem colocados no seu devido lugar, têm de ser
constantemente vigiados, porque os monstros modernos da organização estão
sempre à espreita. (sim, considero que os eventos têm o seu lugar, não estou a
advogar uma vida eremítica, de pura contemplação - pelo menos para já, não sei
onde vou estar daqui a uns anos :D ).
Está quase tudo dito para já. Mas antes de terminar, só um
enquadramento final:
CULTURA DO SUCESSO
"The price of success" - Victoria North
Vivemos numa cultura que privilegia e idolatra o
sucesso. Se não concretizamos a nossa vida em elementos materiais e palpáveis,
achamos impossível ter noção da qualidade dos processos. É obrigatório
apresentar resultados visíveis, sob pena de se ser vítima de uma avaliação
negativa e reprovado! E se formos reprovados, valemos o quê? Nada! Resultado:
desmotivação; frustração; depressão.
Mas graças a Deus porque o Seu Reino não se detém
em resultados de avaliações; Jesus comparou-o a uma semente de mostarda: quase
invisível, mas gerando Vida interior abundante naqueles que por ele são tocados
- e isto apenas no tempo apropriado; este processo não pode ser apressado por
projectos com prazos e deadlines! Os rios de água viva que correm no ventre dos amados de
Deus não estão à mercê de fórmulas ou instrumentos de medição ou avaliação. A
obra de Deus não é controlável ou mensurável por métodos humanos. Tentarmos que
o seja é simplesmente pecado. Alicerçar o nosso valor pessoal e o dos outros em eventos (que
são, no fundo, realizações humanas) também. Porquê pecado?
SALPICOS DE GRAÇA
"Water
drop" - Dick Stolp
O que é
verdadeiramente trágico nisto tudo é o desperdício que constitui. Deitamos fora
a maravilhosa graça de Deus ao querermos controlar os processos sozinhos, com
Deus como espectador ou mero abençoador - assim, os eventos podem facilmente
não ser mais do que instrumentos de controlo, de administração humana do Reino.
Que contradição, que distorção, que tristeza! Deus oferece-nos a Sua presença,
na qual há delícias perpetuamente; nós preterimo-la por fogos de artifício.
Deus oferece-nos comunhão, nós colocamos o foco na gestão. Deus oferece-se para
carregar os nossos fardos e dar-nos alívio, nós preferimos fazer orbitar a
nossa vida em torno de pressões para o sucesso dos nossos empreendimentos. Na realidade, mais do que um
desperdício, trata-se de uma afronta grave e rejeição do próprio Cristo e do
Seu sacrifício na cruz. Pecado.
Finalmente, para ficar bem esclarecido, convém
dizer mais uma vez, os fogos de artifício, a gestão e os prazos podem ter o seu
lugar (não advogo aqui que estes instrumentos sejam eliminados - ainda que
ninguém morreria se o fossem); mas a um nível muito residual e delimitado,
sempre sujeito a vigilância, para que os monstros não acordem e nos devorem antes
que tenhamos tempo para disso nos apercebermos. Para que nada nos impeça de
viver da forma mais plena possível a graça de Deus.
É que a vida da salvação,
isto é, o processo contínuo e diário em que consiste a salvação, é pela graça,
por meio da fé; não vem de obras [eventos?] para que ninguém se gabe das suas
realizações.
One comment
Acho que foi realmente sobrenatural esta reflexão! Porque algo assim, só revelado! Muito obrigado. Também eu me sinto farta de eventos, mas estes pensamentos levaram-me também a outras áreas da minha vida em que muitas vezes impera o orgulho e a auto satisfação. obrigado e que o Senhor continue a revelar e a revelar-Se a si. Abraço
by Unknown on 30 de outubro de 2018 às 10:13. #