Para uma teologia das férias!

by Unknown on domingo, 9 de agosto de 2015




Pois é, chegou aquela altura do ano... a mais ansiada de todas as épocas, na mais colorida de todas as estações: as benditas férias de verão. E este ano - não sendo a primeira vez - bateu-me com mais força a questão: as férias são bíblicas? E se sim, qual a teologia que as apoia?


UMA QUESTÃO DELICADA

É uma questão delicada, esta; é que poderia bem acontecer não haver base bíblica para as férias... e depois, como lidar com o sentimento de culpa acrescido? Emocionalmente, seria uma verdadeira tragédia. E, à primeira vista, não há nada de bíblico nisto! Nem o novo nem o velho testamento falam de turismo ou veraneio - acho que a fuga do Egipto ou o exílio na Babilónia não contam; e como imaginar Jesus a tirar uma selfie com um monumento qualquer como pano de fundo, ou Paulo na praia a pedir para Barnabé lhe passar o protector solar (que já é meio dia, e o sol está muito forte)? Impossível!


BIBLIA

O próprio Jesus disse que as raposas têm covis, e os pássaros têm ninhos, mas o filho do homem não tem onde reclinar a cabeça - um duro discurso para quem vai reclinar ou já reclinou a cabeça (e pouco mais do que isso) durante 15 dias, e de preferência sem interrupções. Na realidade, temos nós o direito de parar tudo durante 15 dias, para passar os dias a descansar?
Como arrumar esta questão?Bom, falar de férias é falar de interrupção do trabalho, portanto, podemos partir daqui. Como analisar então estes conceitos à luz da Bíblia? E como se processavam os ciclos trabalho/descanso nos tempos bíblicos?


ROTINA DIÁRIA

Na cultura israelita, o trabalho era do nascer ao pôr do sol. A duração do dia determinava a extensão do período laboral, perfazendo 2 blocos de mais ou menos 12 horas, um para trabalho e outro para descanso. Hoje, graças à tecnologia, eliminámos as fronteiras entre tempos de trabalho e tempos de descanso. Primeiro, com a revolução industrial, prolongámos o período de luminosidade necessário para levar a cabo as tarefas, e livrámo-nos da necessidade de força animal que exigia paragens para descanso (ao que parece, o workaholism é um fenómeno exclusivamente humano). Depois, com o advento da Internet, e das outras maravilhas da tecnologia - os dispositivos portáteis, como laptops, tablets e smartphones - arranjámos forma de ter sempre connosco, 24h por dia, o nosso escritório, com todos os respectivos utensílios. Uma vida vertiginosa, sem espaço nem tolerância para paragens!


ROTINA SEMANAL

Na cultura israelita, o sábado era sagrado, e obrigatoriamente dedicado ao descanso (um mandamento expresso da parte de Deus). E ai de quem se atrevesse a sequer carregar um simples leito, mesmo que lá tivesse estado deitado durante 38 anos; era de imediato  severamente advertido pela polícia religiosa, os nossos amigos fariseus. Mais recentemente, já nos tempos do Novo Testamento, o domingo foi escolhido como dia de culto, e chamado o dia do Senhor, por ser o dia da ressurreição de Jesus Cristo. O sábado deixou, assim, de ser o dia de paragem obrigatória.
E hoje? Bem, hoje, a nossa cultura encarregou se de diluir tanto o sábado como o domingo numa miscelânea de actividades que, mesmo sendo, muitas vezes, relacionadas com práticas religiosas, são trabalho puro e duro. Claro que vamos tentando, com as nossas racionalizaçõezecas doutrinárias, acalmar a nossa consciência: "já não somos escravos da lei religiosa; no tempo da Graça, não somos mais obrigados a observar dias sagrados". Mas no fundo, sabemos que nos tornámos escravos de outra lei,  a lei cultural, do consumismo e do tempo útil; e que não apenas eliminámos os dias sagrados, mas também o carácter sagrado da vida: em nome das tarefas - cujo completamento é  a nossa glória - deixamos de desfrutar da vida, para apenas a fazer funcionar. E isto em todas as suas dimensões; principalmente no que diz respeito à nossa comunhão com Deus, com a comunidade, a vida familiar, o trabalho, o descanso. Transformámos a vida abundante numa massa disforme.


FÉRIAS
 
Ok, até aqui falamos de rotinas e ciclos do dia a dia; e quanto a interrupções por períodos longos como as que nós chamamos férias hoje? Bom, só pelo que dissemos até aqui, já se justifica uma paragem prolongada, que nos permita fugir, ainda que temporariamente, desta loucura. Mas poderia ser argumentado, com razão, que as férias seriam, então, nada mais que a tentativa de corrigir um erro com outro erro.
Mas a verdade é que, na cultura israelita, também havia períodos de paragem prolongada: eram as festas anuais, prescritas por Deus ao povo. Eram 7, no total, e seguem-se os seus nomes, e respectivas durações:
* Páscoa, Pães Ázimos e Primícias (9 dias no total)
* Pentecostes (1 dia)
* Trombetas(1 dia)
* Tabernaculos (7 dias)
Não tenho tempo para falar aqui do significado de cada festa (afinal, estou de férias), mas em todas estas paragens - que não envolviam necessariamente turismo ou veraneio, já chegaremos aí - estavam a ser trabalhadas 3 dimensões fundamentais ao ser humano:
* Dimensão psicológica/individual:era suposto que, ao assinalar estas festas, cada pessoa reflectisse sobre o que Deus tinha feito no passado, e aprofundasse a sua devoção como indivíduo, beneficiário da obra de Deus enquanto membro do Seu povo eleito.
* Dimensão comunitária/social: estas ocasiões suscitavam a memória colectiva, celebrando o mover de Deus na comunidade, que, unida no mesmo espírito, lhe prestava a devida honra por todas as suas maravilhas
* Dimensão religiosa/espiritual: obviamente, o Deus das glórias passadas, é o mesmo Deus do tempo presente, e era suposto que nas festas, Ele voltasse a ser enquadrado como o fundamento de toda a realidade e assumisse toda a centralidade. Ele é aquele que de facto, dá sentido e organiza todas as dimensões da vida, e é preciso parar regularmente para renovar a consciência disso.


EM SUMA...


Estas paragens obrigatórias, em que os ciclos laborais paravam ou abrandavam severamente, representavam oportunidades para um reencontro da pessoa consigo própria, com a comunidade e com o Deus de todas as esferas e estações da vida.
Mas actualmente, fazemos das férias exactamente o contrário! Em vez de as aproveitarmos para levar a cabo esse reposicionamento, usámo-las como oportunidade de fuga desses mesmos elementos: fugimos, em primeiro lugar, da comunidade, que nos lembra de rotina e responsabilidade; também de nós próprios - queremos parar de funcionar, que dá muito trabalho (de preferência parar de ser quem somos, estamos fartos de levar connosco e com as nossas vidas); mas queremos principalmente fugir de Deus, que é quem nos põe em contacto com a realidade. E não é senão natural querer fugir dele, porque é nele que vivemos, nos movemos e existimos no nosso quotidiano; se queremos romper com a vida quotidiana, temos também de romper com Deus.
Então, sejamos honestos: vamos de férias também porque precisamos de fugir: mas a fuga cristã é só um meio para atingir um fim; o nosso compromisso com Deus, exige que façamos das férias de Verão um retiro espiritual (a sério!) em que tentamos renovar o nosso posicionamento perante a vida em todas as suas dimensões, e as submetemos a Deus, o Senhor, por direito, de todas elas.

Então, que estas férias sirvam não para uma desagregação da vida e uma fuga de Deus, mas para um renovar do nosso continuo encontro com ele, e, assim, connosco próprios, e com aqueles com quem somos um só.

Boas férias!